Arquétipos e mitos da psicologia social figueirense
Um ensaio de António Tavares, publicado na revista Litorais nº7, em novembro de 2007
Santiago Prezado (1), no poema O Mar nos meus ouvidos, narra ao leitor como a toada “constante e plangente” do oceano o acompanhou “pelo mundo fora e vida fora“; dizem os versos, sentidos e marcantes deste figueirense, que essa canção, ouvida desde menino, lhe ficou “gravada na emoção mais funda” do seu fundo sentir, “como se o mar bramisse” dentro de si.
Tal como a ligação íntima e pessoal que o poeta mantinha com o mar, assim a ligação da Figueira – Figueira, Buarcos, Lavos – ao mar é de sempre. O mar foi (é?) a razão da sua origem e do seu desenvolvimento como comunidade material e espiritual. Esta dependência genética e de crescimento moldou a psicologia social do figueirense e fez dela o seu quid, admitindo que esta ideia faz sentido (2).
A influência do mar no carácter das gentes, sendo inegável, admite, obstante, algumas nuances de tempero; por exemplo, no que toca à diferença entre o homem da terra e o homem do mar, não faltam autores que a ponham em causa. Alguns chamam a atenção, por exemplo, para o facto de o pescador português ser na verdade um camponês travestido. Unamuno deixou-se deslumbrar pelas juntas de bois na praia, a puxar os barcos, e pela expressão “lavrar no mar” (3). Torga chamou-lhe “campo macio de lavrar” e “fingido lameiro” que “afogava o arado e o lavrador” (4). Cardoso Pires, num texto de rara beleza (5), persegue terra fora um arado que só pára em cima das ondas, a sugerir a sua adptação em caravela – dir-se-ia que o arado se fez barco, o camponês se fez navegante. Sobre Buarcos existem descrições de como a vinha quase molhava as suas raízes no mar. Não é despiciendo notar, assim, este bailado entre a terra e o mar na ocupação dos homens e no forjar da sua maneira de ser. Se ambas as forças estão presentes de forma intima na feitura do seu carácter, poder-se-á sempre dizer que o homem de Buarcos, da Gala e da Costa de Lavos é pescador; que o gandarês é camponês; que o das terras do sul – Paião, Alqueidão, Borda do Campo é camponês; e que o figueirense nasce já urbano, já dado ao comércio, mas numa ligação íntima ao rio e portanto ao mar, embora mantenha com este uma relação diferente da dos seus conterrâneos (6).

O mar, como influência dominante, não está sempre presente da mesma maneira no carácter do figueirense. Distinguimos o mar-chão do mar-festivo. O primeiro, vivenciado pelo homem que o lavra e o navega, que faz dele a sua labuta e nele verte o seu suor, o seu sangue e a sua vida, de forma sui generis; entra aqui a visão do mar como “um meio perigoso, um caos de onde a vida emergiu mas que está sempre pronto a voltar a tragar as suas criações” (7). O segundo, experimentado pelo homem da urbe, burguês – ou afim -, aberto ao exterior e recebendo a sua influência, que no mar encontra um estilo de vida festivo, ligado à saúde, à higiene, ao bem-estar e à diversão e que aproveita o mar como paisagem e produto turístico.
O mar-chão foi dominante até, digamos, à afirmação da Figueira balnear e turística, um período que se inicia com a ligação de caminho-de-ferro à Beira Alta (e assim Espanha) e à capital – finais do século XIX – e que se consolida nos anos 30 do século passado. O segundo, o mar-festivo, prolonga-se de então aos nossos dias com diferenças severas e marcantes; neste, é perfeitamente legítimo distinguir duas fases distintas: a da Figueira-rainha, a praia das praias, chic, cosmopolita, erudita e burguesa por excelência, e o período que se segue, de decadência, de abandono, de recolhimento, de vivência e consciência saudosa, a solicitar messianismos em ideais de revivalismo local.

[continua]
(1) Poeta figueirense, 1883-1971
(2) Territorialmente, mas também do ponto de vista das mentalidades, podemos distinguir o homem do litoral, que se aproxima do mar, do homem do litoral que trabalha a terra. Referimo-nos à região das Gândaras e ao tipo gandarês. Um é marítimo – pescador e navegante – o outro é camponês e lavrador. “É na agricultura que o gandarês ainda hoje vai procurar a sua subsistência” refere Idalécio Cação no seu livro “Gândara Antiga”, ed. CMFF 1997.
(3) Unamuno, Por terras de Portugal… Dizia o pensador espanhol em que em Portugal o mar se ruraliza.
(4) Torga, Poemas Ibéricos.
(5) Em A Charrua entre os Corvos, incluído no Jogos de Azar, Ed. O Jornal, 1985.
(6) A ligação ao rio que foi muito forte, pela navegação e comércio mas também enquanto lúdico e espiritual, perdeu-se com a relação dos figueirenses ao mar-festivo e, é hoje, nula.
(7) Soeiro, Teresa e Lourido, Francisco, Fainas do mar, ed. CRAT, 1999.