Podcast que pretende acolher desassossegadas, ecléticas e curiosas vozes do concelho da Figueira da Foz.

Figueira da Voz

Do mar-chão ao mar-festivo (2)

Arquétipos e mitos da psicologia social figueirense
Um ensaio de António Tavares, publicado na revista Litorais nº7, em novembro de 2007

O MAR FESTIVO

A Figueira da Foz é sinónimo de praia. Ainda hoje. Não porque seja uma referência dos nossos dias como estância balnear, mas porque a praia foi a melhor e a mais forte das suas imagens de marca. Não interessa aduzir aqui das razões que levaram à decadência da Figueira e Buarcos como destino de férias de Verão, mas atentar na importância que teve o nascimento e o apogeu da praia na conformação do carácter das gentes.

Na Figueira da Foz, a praia começou a ganhar importância com as acessibilidades ferroviária e rodoviária. A abertura da linha da Beira Alta e da linha do Oeste (1882 e 1888, respectivamente) e a ligação à linha do Norte (1889) vieram permitir uma ligação fácil ao interior beirão e a Espanha, bem como a toda a região do Oeste e à capital. O mesmo sucedeu com a acessibilidade rodoviária, nomeadamente as estradas de ligação a Coimbra (1871) e e Leiria (1875) (8).

O Bairro Novo de Santa Catarina teve o lançamento da primeira pedra em 1869 e constituiu o rasgar da frente atlântica da cidade. Com ele, a cidade voltou-se definitivamente para o mar, mas foi também nesta altura que a parte velha da urbe se consolidou na sua relação com o rio – referimo-nos ao aterro das praias/praças. Surgiram as primeiras unidades hoteleiras e as agremiações de convívio, lazer e jogo.

A partir daqui, a Figueira da Foz vergar-se-ia ao esplendor da praia e ao glamour que lhe estava associado. Não vale a pena descrever essa ambiência já saturadamente exposta, esse “décor” chic, pequeno-burguês, às vezes com laivos de pretensão intelectual. A Figueira passa a ser isso, embora esta situação apenas corresponda a uma parte do ano: o período de vereneio. Cedo, o figueirense percebeu que a economia do turismo poderia ser uma forma de sustento para o ano todo, mas ainda que do ponto de vista material fosse difícil esticar o Verão, no espírito era possível – bastava hibernar o resto do ano. Certo é que, o figueirense, inicialmente à perda estival e procurou manter acesa alguma da sua ambiência própria – teatros, casinos, associações de convívio e recreio procuravam saciar a “fome de Verão” que se instalava no final deste. “Havia, sobretudo, os retiros de comes-e-bebes que davam ao Outono – ventoso e agreste – a ilusão de ainda ser Estio“, refere Luís Cajão (9) e adianta, “Cidade estroina, a minha (…) a respirar na «época morta» balões de oxigénio estivais, cada um deles mais festivo e estimulante que o anterior”. Esta boémia, confessa Luís Cajão, era uma forma de “prolongar um Verão eufórico e transitoriamente cosmopolita“.

Aos poucos, no entanto, a situação mostrou-se impossível de sustentar e o figueirense passou a viver sempre num estado de insatisfação permanente, de falta, de apetite latente que não encontra o que mastigar. Ainda hoje é assim, mas no passado este rush era muito mais acentuado. Esta “fome de Verão” confere ao figueirense um carácter bipolar: esfusiante, quando a cidade é invadida pelos banhistas e melancólico e triste, quando se instala a pacatez do Outono. Vemo-lo nos nossos dias e percebemos como a situação deve, de início, ter sido devastadamente desoladora; ainda hoje, o final da praia coincide com o período em que fecham as esplanadas, os bares e os restaurantes, desaparece o tráfego febril, os estabelecimentos comerciais esvaziam-se e os apartamentos de segunda habitação correm as persianas, que vão ganhando pó e escurecendo, companheiras pesadas e tristes do estado psicológico que assalta as gentes. Sinal particular da “fome de Verão” é a contagem incessante (por estimativa, ou “a olho”) do número de visitantes. No início e no final da época as conversas rondavam à volta deste tema, num arrepio constante de se poder contabilizar neste afluxo um número inferior ao do período anterior. Se o afluxo é baixo, a melancolia instala-se mais cedo e o figueirense torna-se neurótico e saudoso.

[continua]

1ª parte

(8) Acrescem outros factores, como o enriquecimento da classe burguesa, e mais tarde, a melhoria generalizada do nível de vida e o direito a férias que hão-de levar à massificação (democratização) da praia como factor de lazer.
(9) As Torrentes da Memória, Palas Editores, Lisboa, 1979.

da mesma voz

Do mar-chão ao mar-festivo (5)

Os intelectuais, que são conotados sempre com atitudes futuristas, não têm lugar na Figueira da Foz. Não existem poetas, escritores, articulistas de têmpera e verve, músicos ou actores de craveira; a intelectualidade figueirense exilou-se e buscou outras paragens porque, na verdade, não existe ambiente intelectual. A última realização cultural de porte que aqui se fez importava os seus protagonistas e nunca conseguiu seduzir verdadeiramente o figueirense, mesmo aqueles que tinham pretensos interesses intelectuais

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Do mar-chão ao mar-festivo (4)

A partir de uma dada altura a praia vai-se perdendo; metaforicamente, mas não só, o mar afasta-se. A construção do molhe norte, tão desejada pelos figueirenses, aniquila o mar como recurso estival. Em seu lugar instala-se um areal distante que confere luz própria à urbe, mas que põe o mar longe. Este areal, liso, branco e vazio, é a imagem da alma figueirense, despovoada dos encantos marinhos e do que lhe estava tão proximamente associado.

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Do mar-chão ao mar-festivo (3)

A cidade monta um cenário para um espectáculo que decorre durante um certo período e, no final, desmonta-o. O palco esvazia-se, o público debanda, ficam os restos da festa.

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Do mar-chão ao mar-festivo (1)

Santiago Prezado, no poema O Mar nos meus ouvidos, narra ao leitor como a toada “constante e plangente” do oceano o acompanhou “pelo mundo fora e vida fora”; dizem os versos, sentidos e marcantes deste figueirense, que essa canção, ouvida desde menino, lhe ficou “gravada na emoção mais funda” do seu fundo sentir, “como se o mar bramisse” dentro de si.

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Dance me to the end of love

Se formos ver videoclips de músicas sobre este tipo de amores… as caixas de comentários são absolutamente extraordinárias. É uma maravilha! Um dia, as pessoas que nos estão a ouvir, que estejam em baixo ou descrentes na natureza humana e descrentes no amor, vão às caixas de comentários do “Dance me to the end of love”, do Leonard Cohen, por exemplo. E deliciem-se. Porque as confissões que as pessoas fazem lá e o que mostram da sua vida em casal é fabuloso.

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Luto

Tomando como ponto de partida o fogo de 15 de outubro de 2017, de tal modo violento que marca um antes e um depois na sua história, o espetáculo criado em Tábua para a Rede Artéria “Luto” debruça-se sobre as questões do trauma e da catástrofe.

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