Podcast que pretende acolher desassossegadas, ecléticas e curiosas vozes do concelho da Figueira da Foz.

Figueira da Voz

Do mar-chão ao mar-festivo (3)

Arquétipos e mitos da psicologia social figueirense
Um ensaio de António Tavares, publicado na revista Litorais nº7, em novembro de 2007

Uma das notas importantes da situação descrita é que a ambiência por ela gerada tem um carácter irreal e efémero; por isto lhe chamamos “décor“. A cidade monta um cenário para um espectáculo que decorre durante um certo período e, no final, desmonta-o. O palco esvazia-se, o público debanda, ficam os restos da festa. O figueirense aprende a viver da irrealidade e do cenário (10), do faz-de-conta, do poderia ser, mas um poder-ser tão em potência que permite sugerir quase tudo. Surgem propostas para as mais irrealizáveis proezas, algumas delas, contraditórias até com o princípio de tudo – o aproveitamento da praia de banhos -, propostas que a míngua da possibilidade de se concretizarem, não passam disso mesmo, de cenários (11).

José Jardim, advogado e visionário, preconizava em 1940 a construção de uma cidade nova, uma urbe-maravilha, uma Las Vegas atlântica e europeia de características sui generis, marcada por “uma vida hipnótica, em que o jogo daria a ilusão de poder cobrir facilmente o consumo que o dinheiro tem” (12). Esta cidade nova, que se construiria a norte do palácio Sotto Maior e subiria pela encosta sul da serra, só poderia ser feita aqui, na Figueira, devido “à sua posição central, às suas características de grandeza e vastidão, à riqueza e variedade de belezas e dons naturais, à sua frequência, ao clima incomparável“. Cidade a fazer “dum golpe, dum jacto“, que iria suscitar o espanto do pais e do mundo: “Portugal inteiro – e não só Portugal – viria admirar a Figueira, enamorado pela sua magnífica fisionomia”. Esta nova urbe seria uma “parada” de “pompa, cenário, nobreza, majestade, entusiasmo, cor, abundância e claridade“. O notável advogado conclui que o preço de tal obra seria despiciendo, uma vez que “a Figueira eclipsaria todas as outras praias portuguesas“; alcandorado na sua visão jactante, Jardim avisa o leitor que, “uma vez construída, até as aves que vivem na Serra seriam cúmplices, de lá do alto, de tanta maravilha“(13).

Quem lê, hoje, a visão exuberante de José Jardim, pergunta-se, obviamente, de onde adviria tal capacidade onírica. Mas o figueirense, porquanto atravessava as suas conversas e os escritos de jornal, arremessava-se na poesia e na prosa dos literatos (14). Celestino Maia, por exemplo, retrata o clima figueirense numa amplitude única: “privilegiado, pela sua regularidade, dias de sol e moderação que sobreeleva o das mais afamadas praias francesas, com larga margem de horas solares“, e surgem notas de que esta visão é apoiada por “climatologistas e prestigiosos professores de Medicina“.

José Jardim já antevira, para além da tal cidade nova, outras maravilhas a crescerem como cogumelos, desta vez a partir do porto – um porto franco, comercial, turístico e da marinha de guerra (para albergar, escrevia o causídico, “submarinos“!). Na envolvente estaria um aeroporto (15), com todas as maravilhas que uma estrutura destas pode trazer, indústrias de alto quilate e um tráfego comercial de volume soberbo. A Figueira teria “o principal” porto do país, justificando o autor, de forma pormenorizada, como residiriam aqui as condições necessárias e suficientes para tal.


Esta forma de ilusão atinge também a designação das coisas e a forma como elas são nomeadas; repare-se no Palácio
Sotto Maior, no Castelo engenheiro Silva, no Grande Hotel, no Coliseu Figueirense, nos casinos, cujos nomes apontam para ordens de grandeza apreciáveis – Europa, Oceano, Peninsular -, nas ruas que são avenidas e na adjectivação, por exemplo, do Cabo Mondego como “metrópole industrial“.


De igual modo e resultante deste carácter, o figueirense tem necessidade de se comparar com os outros, mas sempre
para se alcandorar a uma posição superlativa que nunca conhece paralelismos com outros casos que lhe possam ser idênticos: “a mais bela“, “a mais linda“, “a primeira“, a “rainha” das praias. Raramente se estabelecem comparações casuísticas, pois estas permitem descer ao concreto e desfazer a ilusão.

Evidentemente que o período estival era um período de tranquilidade, alegria e bem-estar. Manuel Santos captou este éden de forma impar nas brincadeiras, nos jogos e risos das crianças, na pose das raparigas mostrando as suas formas, nos corpos espartanos dos rapazes, envolvidos em actividades desportivas, na claridade branca das imagens, nos chapéus de sol, nas ondas e na espuma do oceano. Não se vêem, nas suas fotografias, pobres, doentes, gente suja e marginal. Mesmo a paisagem urbana aparece emoldurada nos seus pináculos (Castelo Eng. Silva e farol do Forte de Stª Catarina), na elegância dos candeeiros e das escadarias. Muitas das imagens têm um cunho de montagem teatral, traduzido na pose e nas vestes dos fotografados: os pares dos ranchos, os figurinos das representações populares, as crianças dos jardins-escola. Era, pois, bem forte, esta marca áurea de felicidade, uma marca que o figueirense vai querer manter e que, quando o não pôde fazer, a reinventou na construção saudosa, de forma a permanecer nela.

[continua]

1ª parte
2ª parte

(11) Usa-se e abusa-se do desenho, do esboço, do plano, da maquete.
(12) José Jardim, As grandes linhas de uma cidade
(13) Eduardo Lourenço, embora noutra vertente, no seu Labirinto da Saudade, nota no português uma “topologia imaginária”, “irrealista e fonte de irrealismo”
(14) Um conto de Raimundo Esteves intitula-se Milagre da Figueira. Nele se narra a história de uma mãe e sua filha que na Figueira resolvem – por milagre – os seus graves problemas.
(15) Não esquecer como, de forma recorrente, este aeroporto vem ao caso na Figueira da Foz.

da mesma voz

Do mar-chão ao mar-festivo (5)

Os intelectuais, que são conotados sempre com atitudes futuristas, não têm lugar na Figueira da Foz. Não existem poetas, escritores, articulistas de têmpera e verve, músicos ou actores de craveira; a intelectualidade figueirense exilou-se e buscou outras paragens porque, na verdade, não existe ambiente intelectual. A última realização cultural de porte que aqui se fez importava os seus protagonistas e nunca conseguiu seduzir verdadeiramente o figueirense, mesmo aqueles que tinham pretensos interesses intelectuais

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Do mar-chão ao mar-festivo (4)

A partir de uma dada altura a praia vai-se perdendo; metaforicamente, mas não só, o mar afasta-se. A construção do molhe norte, tão desejada pelos figueirenses, aniquila o mar como recurso estival. Em seu lugar instala-se um areal distante que confere luz própria à urbe, mas que põe o mar longe. Este areal, liso, branco e vazio, é a imagem da alma figueirense, despovoada dos encantos marinhos e do que lhe estava tão proximamente associado.

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Do mar-chão ao mar-festivo (2)

A Figueira da Foz é sinónimo de praia. Ainda hoje. Não porque seja uma referência dos nossos dias como estância balnear, mas porque a praia foi a melhor e a mais forte das suas imagens de marca. Não interessa aduzir aqui das razões que levaram à decadência da Figueira e Buarcos como destino de férias de Verão, mas atentar na importância que teve o nascimento e o apogeu da praia na conformação do carácter das gentes.

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Do mar-chão ao mar-festivo (1)

Santiago Prezado, no poema O Mar nos meus ouvidos, narra ao leitor como a toada “constante e plangente” do oceano o acompanhou “pelo mundo fora e vida fora”; dizem os versos, sentidos e marcantes deste figueirense, que essa canção, ouvida desde menino, lhe ficou “gravada na emoção mais funda” do seu fundo sentir, “como se o mar bramisse” dentro de si.

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Dance me to the end of love

Se formos ver videoclips de músicas sobre este tipo de amores… as caixas de comentários são absolutamente extraordinárias. É uma maravilha! Um dia, as pessoas que nos estão a ouvir, que estejam em baixo ou descrentes na natureza humana e descrentes no amor, vão às caixas de comentários do “Dance me to the end of love”, do Leonard Cohen, por exemplo. E deliciem-se. Porque as confissões que as pessoas fazem lá e o que mostram da sua vida em casal é fabuloso.

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Luto

Tomando como ponto de partida o fogo de 15 de outubro de 2017, de tal modo violento que marca um antes e um depois na sua história, o espetáculo criado em Tábua para a Rede Artéria “Luto” debruça-se sobre as questões do trauma e da catástrofe.

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