Arquétipos e mitos da psicologia social figueirense
Um ensaio de António Tavares, publicado na revista Litorais nº7, em novembro de 2007
A saudade figueirense
A partir de uma dada altura a praia vai-se perdendo; metaforicamente, mas não só, o mar afasta-se. A construção do molhe norte, tão desejada pelos figueirenses, aniquila o mar como recurso estival. Em seu lugar instala-se um areal distante que confere luz própria à urbe, mas que põe o mar longe. Este areal, liso, branco e vazio, é a imagem da alma figueirense, despovoada dos encantos marinhos e do que lhe estava tão proximamente associado. A saudade que era só de Inverno, aos poucos instala-se para o ano todo e o figueirense passa a ter saudade de um passado irrepresentável, no sentido de que não se pode transpor para o presente. Da esplanada, o figueirense já não contempla a praia e os banhistas, contempla o mar ao longe e, aos seus pés,
a enormidade deserta do areal. O vazio do areal é de tal ordem pesaroso no carácter do figueirense que este mostra necessidade de o preencher a todo o transe: alvitram-se pinhais, parques aquáticos, campos desportivos, casinos, o que quer que seja,
tudo menos o areal vazio, essa chaga constante a preencher a distância duma grandeza ida.
Definhados os casinos, as casas de banhos, os hotéis, em suma, o reinado da praia “mais” e “única”, a Figueira instala-se numa normalidade vulgar que se torna quase insuportável. É a vulgaridade da pevide e do tremoço que tanto chocou Luís Cajão
e que se derrama pelos passeios do Bairro Novo num ar de festa popularucha, conspurcando os antigos antros da finesse. A pevide e o tremoço mastigam-se a par de um travo saudoso, uma saudade escorreita e minguada, uma saudadita que não fere mas mói, não leva ao suicídio mas deprime.
A saudade, que Joaquim de Carvalho definiu como a “consciência de algo ausente e cuja presença se apetece com desejo -melancólico”, coloca o saudoso perante o seu “mundo pessoal e vivido”(16). Na verdade, se outros autores vêem a saudade como um sentimento que dispensa o objecto, ou até mesmo como o desejo de algo ausente que não é identificado(17) (saudade de tudo, “saudade de ter sido Deus”, como em Mário de Sá Carneiro), no caso da saudadita figueirense ela tem objecto concreto, ainda que, às vezes, vago e nebuloso, de contornos mal definidos. A saudade é, no entanto, sempre um “sair do tempo”, pois transpõe o passado para um futuro, transposição que leva a registo do presente, por fazer deste a ocasião do sentir.
Para António José Saraiva(18), a saudade é “uma dor da ausência e um comprazimento da presença, pela memória. É um estar em dois tempos e em dois sítios ao mesmo tempo (…) é um não querer assumir plenamente o presente e o não querer reconhecer o passado como pretérito.” E nota este autor: “a saudade está ligada ao apego que se criou aos sítios, aos tempos e às pessoas que ficaram distantes”.
No caso do figueirense, a saudade é pessoal mas é também uma saudade transmigrada, porque o seu objecto transferiu-se entre gerações, passou de pais a filhos, é, por assim dizer, uma saudade histórica, como a concebeu, num sentido mais lato, António José Saraiva.
Na capa de um livro do figueirense Luis Cajão(19), a imagem do escritor surge a emoldurar um cartaz turístico dos anos 20. O olhar melancólico do autor, a preto e branco, opõe-se ao sorriso de duas jovens, de sombrinha, com a praia ao fundo, a
cores. Livro de memórias, nele o escritor dá nota duma melancolia fina, entardecida, uma morrinha da memória perpassada por recordações de gentes e espaços que já não existem, mas que foram vividos e sentidos. “Sim esta era a minha cidade, a minha rara cidade de outrora, pequeno burgo de ruas de vento e palmeiras..”, refere a dado passo. N’ As Torrentes da Memória(20), o mesmo autor persiste em idêntica toada, lembrando a boémia, a estroina, os ambientes e as figuras, como as “Manolas de olhos andaluzes e pernas biscainhas que vinham perturbar a mansidão, a placidez da antiga póvoa marítima “, pois “o Verão corrompia”.
A atitude saudosa, como fazia notar António José Saraiva, é pouco propícia à acção. Trata-se de um sentimento que, no notar de Leonardo Coimbra, não salva mas encerra em si “indícios de salvação”(21). Assim se tem moldado o carácter figueirense;
capaz de obras grandiosas pela palavra, a sua realidade é composta de uma enorme apatia. Este transtorno entre o dizer e o fazer, entre o plano do verbo e a dimensão do agir, que encontra licerce no sentimento saudoso, faz do figueirense uma personagem de ontem, que, assim colocada, pouco tem a construir no futuro porque acredita que já construiu algo no passado.
O figueirense é crítico e descrente de tudo o que se queira fazer, a menos que isso se assemelhe ao que existiu na época áurea da sua história. Amarrado ao passado, é-lhe difícil conceber outro futuro. Na verdade, o futuro, enquanto compromisso com o presente, não existe, impõe-se sempre como compromisso com o passado. Ninguém sabe o que o figueirense quer para amanha que seja ex novo.
Este fenómeno foi posto à prova no passado recente, quando um populismo de carácter passadista e revivalista conseguiu arrebatar os figueirenses depois de décadas de inanidade e pasmaceira. Recuperaram-se alguns dos símbolos desse passado de glória (piscina-praia), criou-se uma movida semelhante à dos gloriosos anos do mar-festivo, sustentada a fogo-de-artifício semanal, e o figueirense regurgitou de aparente satisfação. O sonho não poderia ser sustentado por muito tempo, pois era demasiado caro para os seus bolsos, mas nenhum figueirense queria saber disso. O delirio, estampado em obras irrealizáveis, associadas a nomes sonantes que nunca passaram do seu anúncio ou de mero esboço, tinha invadido as hostes saudosas e era difícil estancá-lo. Ai de quem dissesse que de delírio se tratava, pois isso significava libertar o sonhador do estado onírico e aprisiona-lo – trazendo-o – à realidade. Hoje, subsiste aquilo que Agostinho da Silva visionava na consciência saudosa: o poderia ter sido.
Este fenómeno introduziu um elemento novo no carácter e na psicologia do figueirense: um sebastianismo provinciano, quase parolo, que acredita ser necessário vir alguém de fora arrebatá-lo, uma vez mais, a um presente de apatia e modorra. A primeira condição para se amaldiçoar alguém é o visado ser de cá, pois o
figueirense de forma circunspecta e militante faz valer o adágio santos da casa.
Entretanto, com desejos e ânsias de retorno e salvação, figueirense procura estribilhos que o deixem pensar que ainda é possivel voltar ao seu estado superlativo: tenta records que o ponham no Guiness Book, nem que seja de raparigas vestidas de bikini; organiza, de forma pomposa, as “Conferências do Casino”; Importa campeonatos mundiais disto e daquilo, passando das na busca-se a glória perdida e em cada um derrama-se o desânimo e tigas corridas de triciclos às provas de Enduro. Em cada evento busca-se a glória perdia e em cada um derrama-se o desânimo e liberta-se a melancolia do poderia ter sido.
[continua]
(16) Joaquim de Carvalho, Problemática da Saudade
(17) Ramon Pineiro e Daniel Cortezón, citados por Cunha Leão em O Enigma Português
(18) Saraiva, A Cultura em Portugal
(19) Um Secreto Entardecer, Ed. Escritor, Lisboa 2000