Arquétipos e mitos da psicologia social figueirense
Um ensaio de António Tavares, publicado na revista Litorais nº7, em novembro de 2007
Os intelectuais, que são conotados sempre com atitudes futuristas, não têm lugar na Figueira da Foz. Não existem poetas, escritores, articulistas de têmpera e verve, músicos ou actores de craveira; a intelectualidade figueirense exilou-se e buscou outras paragens porque, na verdade, não existe ambiente intelectual. A última realização cultural de porte que aqui se fez importava os seus protagonistas e nunca conseguiu seduzir verdadeiramente o figueirense, mesmo aqueles que tinham pretensos interesses intelectuais(22).
O teatro, que constitui actividade recreativa e que sempre ocupou os tempos livres dos nativos e na qual o seu ego se revê de forma satisfatória, parou no tempo. Os repertórios repetem-se, ano após ano, com os mesmos textos de há cinco décadas,os mesmos cenários naturalistas, as mesmas pausas e ritmos e
até os muitos tiques que fizeram história e marcaram as plateias.
O teatro figueirense, se assim se pode dizer, é um objecto arqueológico que deve ser visto à luz de um espírito histórico, pois ignorou por completo qualquer actualização das artes cénicas e a sua evolução performativa.
Ainda há poucos anos a imprensa escrita parecia parada nos anos trinta ou quarenta e o mesmo se passava com a rádio. A primeira anotava as visitas e os aniversários dos leitores e compunha num estilo redactorial desfasado no tempo; até as imagens que ilustravam as notícias pareciam retiradas de velhos
álbuns de família ou serem postais antigos de eventos que pareciam pertencer ao passado.
É notável a dificuldade de integração do espaço figueirense na realidade nacional. Não há registos que interessem à imprensa de cobertura nacional. O figueirense acredita que o seu mundo continua circunscrito ao Bairro Novo e foi incapaz de ver a realidade quando este se tornou visivelmente moribundo. A única presença constante que a Figueira possui na dimensão nacional é a disputa da primeira liga de futebol feita pela Naval 1º de Maio, mas tal circunstância passa despercebida à esmagadora maioria dos figueirenses. porque não se correlaciona com o passado áureo. O clube é uma ilha dentro da cultura desportiva figueirense, mais virada historicamente para os desportos náuticos.
De resto, mesmo regionalmente, a presença da Figueira circunscreve-se ao Verão e à praia, exactamente como há cem e há cinquenta anos.
Um dos romances modernos de um figueirense é Lugar de Exílio, de António Menano, que retrata a vida de Miguel de Góis, um figueirense exilado que deambula por várias capitais e cidades europeias, numa peregrinação interior assaz labiríntica, cuja razão o autor nunca deixa perceber. Dir-se-ia que Góis anda ao sabor de coisa nenhuma, por terras que o vão aceitando “se delas não pedirmos muito”. Góis, que vê poesia “até em descascar batatas” observa o tempo e os acontecimentos passarem como se não estivesse neles, como se não existisse. É um (anti) herói absurdo, Camuseano, um Sísifo de trazer por casa, que vive o tempo “sem obrigações ou raivas” e que recorda, imagine-se,
“sabores” como “a sopa de letras, alfabeto comido a custo com bocados de galinha desfiada”. Góis lembra-se das “noites do Picadeiro, as esplanadas coloridas pelos vestidos das espanholas, os corpos jovens a acotovelarem-se sobre o cimento, passadas repetidas para cá e para lá, o Casino, o Café Atlântida, as brisas do Mondego, as pevides a estalarem nas matinées do Parque-Cine” e conclui atinado: “Que bom seria poder estar na minha cidade”(23). A mais desta vez, Miguel de Góis relembra, numa outra, “correrias na praia, mergulhos na água fria junto aos rochedos do Cabo Mondego”, o que é pouca lembrança para tanto perambular. A verdade é que Miguel de Góis, que deambula internacionalmente, que está fora de tudo e longe de tudo, que se exilou voluntariamente, cuja vontade de acção se mostra superlativamente ociosa, pois está “mais quieta do que a cela de um frade pecador”, encerra em si praticamente tudo quanto dissemos ser apanágio do figueirense; Miguel de Góis existe como se não existisse, é uma personagem sem coordenadas e sem futuro. Afinal, ele próprio diz viver “como se na vida não houvesse factos, apenas ficções”. Fora do seu espaço, sem encarar um regresso possível, sem poder morder o passado ausente, Góis é, como a Figueira de hoje, uma ficção.
Dois Mundos
Uma nota imprescindível: é certo que nem todas as classes sociais vivenciavam com a mesma profundidade o paraíso da estância balnear. Desde logo, o fenómeno é eminentemente urbano e passa à margem das zonas rurais como, por exemplo, as Gândaras. Da mesma forma, ia uma distância considerável entre o finito e a costureira, o primeiro arrastado na féerie e na volúpia do verão burguês, a segunda aspirando a sua ascensão a esse
patamar. Ambos partilhavam, é certo, o sonho. Na novela regionalista A Maria Abérola de Raimundo Esteves, o cotejo dos dois mundos aparece-nos claro.
(22) Referimo-nos obviamente ao Festival de Cinema, extinto pelo tal movimento populista-revivalista. Os cânones do Festival não encaixavam no glorioso passado figueirense.
(23) Repare-se uma vez mais como a personagem quer regressar a um passado que já foi (perdoe-se o pleonasmo) e não àquilo que a sua terra é no momento em que o regresso é desejado
Este texto é uma parte de um trabalho a editar brevemente.
Agradecimentos a Miguel de Carvalho pelo fundo bibliográfico.