O novo ciclo autárquico impõe também um relançamento do eterno debate em torno do “desígnio” da Figueira da Foz, da sua “imagem de marca”, do seu destino. Que futuro? Que estratégia? Que identidade? Aquelas questões que não podem deixar de ser cíclicas porque esse também é um sintoma da vitalidade e do inconformismo de uma comunidade. A Figueira da Foz assiste aos sinais dos tempos e debate-se, questiona-se e atualiza-se. É uma boa conversa. Respeitando todas as posições, tenho no entanto algumas reservas em relação a este conceito de desígnio, que passarei a expor.
Na minha encarnação profissional mais recente de consultor de comunicação territorial, tenho trabalhado nos últimos anos sobretudo junto de entidades públicas, como municípios ou agrupamentos de municípios, e não com empresas. Em estratégias de desenvolvimento para concelhos tão díspares como Lagos, a Nazaré ou o Vimioso, este último, acreditem, um desafio muito mais complicado do que o da Figueira da Foz… Seja como for, trabalhar mais proximamente com os gabinetes do poder local e com as realidades múltiplas no terreno, proporcionou-me uma certa perspetiva de drone aéreo sobre o país e um renovado respeito por quem tem que gerir territórios em tempos tão exigentes, embora plenos de oportunidades. Se nos dois primeiros casos, o objetivo era definir estratégias setoriais (turismo e património, sobretudo) alinhadas com as mais recentes directrizes comunitárias, governamentais ou internacionais (ONU), no caso do município Transmontano tratou-se de definir um modelo de desenvolvimento integral, de projeção do concelho e dinamização de todos os seus ativos (económicos, turísticos, culturais, etc.).
Neste trabalho de produção de planos de longo prazo, já agora, realizámos dezenas de entrevistas e inquéritos aos agentes locais, de todos os setores económicos, a autarcas, a técnicos (recursos humanos tão preciosos e tão desperdiçados…), a representantes associativos, inúmeras reuniões com os gabinetes para limar ideias, cabendo-nos a nós, consultores, andar também constantemente a par do “estado da arte” em termos de modelos de desenvolvimento, casos de sucesso e inovação, tendências e novidades afins, conhecimento que é incorporado nos documentos produzidos.
É sobre esta rica experiência dos últimos três anos, basicamente, e em muitos anos de jornalismo e afins, que assenta a minha convicção de que um território, diferentemente das empresas, é antes uma complexidade de interesses, direitos, deveres e tradições, que não pode aceitar como desígnio um setor económico em particular ou mesmo uma especialização. Um país, uma região, um concelho, para ser resiliente e enfrentar adversidades e volatilidades globais sem colapsar, tem que diversificar, definindo quanto muito duas ou três prioridades, mas garantindo basicamente que os ovos estão em várias cestos. Deve, no meu entender, alavancar todos os seus recursos e considerar de forma equanime os mais variados interesses. Com estratégias de desenvolvimento atualizadas e diferenciadas para cada setor. E procurando atrair anda mais atores e setores.
No caso do Vimioso, por exemplo, a resposta não será certamente pôr as fichas todas na agricultura (o seu ponto mais forte), mas sim diversificar a economia para atrair novos públicos (residentes e visitantes), novas atividades e novas empresas. Sobretudo em duas frentes onde se identificou mais potencial: agro-indústria e turismo/cultura, mas sem deixar ninguém para trás e abrindo novos caminhos para novos mercados. Não se inventou a roda, todos ali sabiam o que parecia óbvio (a paisagem é magnífica, a natureza é abundante, a carne é soberba, as tradições são ricas, a Espanha é ali ao lado), andam certamente há decadas a discutir os dramas existenciais do concelho, mas nunca esse potencial tinha sido explorado de forma estruturada e só agora o Município se dotou de uma ferramenta para operacionalizar uma prática de desenvolvimento em várias frentes para a era digital, que já está a pôr em prática. Isto é, só agora adotou uma estratégia, que se quis inclusiva. O seu desígnio é, agora, ser um concelho atrativo para diversos nichos de investidores, moradores e turistas, públicos identificados como prioritários e para os quais se definiram dedicadas abordagens. Uma “imagem de marca” diferente para cada público-alvo, sob o “chapéu de chuva” conceptual dos tais desígnios gerais da sustentabilidade, da qualidade de vida e da inovação. Além do imenso básico de que carece aquele território remoto e despovoado – e que cabe, sobretudo, ao Poder Central -, urge sobretudo conhecer bem a realidade, planificar para o futuro, integrar os territórios nas dinâmicas e tendências globais e até transformar fraquezas, como o isolamento, em forças.
Um pensamento só é estratégico quando considera todos os fatores e recursos. Quando falamos de desígnios, devemos então colocar a questão nest’outro patamar: o desígnio último é o bem-estar dos cidadãos e do meio-ambiente, que depende de metas coletivas e transversais, como a sustentabilidade, a eficiência energética, a digitalização, a justiça social, a transparência, a segurança, a inovação, ou a qualidade de vida. Metas que tocam a todos os atores, públicos e privados e que atraiam investimento diversificado e qualificado. Uma imagem de marca de modernidade e de qualidade, um desígnio de excelência. Nunca será, portanto, uma situação de oposição, mas sempre de complementariedade, mesmo que se dê prioridade a uns setores mais do que a outros. Sob pena de estarmos a sufocar atividade económica e a desaproveitar ativos preciosos. De contrário, será como esperar ganhar ao xadrez jogando só com a rainha…
Assim, fará todo o sentido a (re)abertura do debate e a produção de estratégias sectoriais sintonizadas com as macro-políticas, para o desenvolvimento indústrial, para o turismo, para o ambiente, para a cultura, para a saúde e até para os desafios do clima, como fez Cascais, que elaborou já o seu Plano Estratégico do Concelho de Cascais Face às Alterações Climáticas. Ou, simplesmente, uma grande estratégia pós-Covid que contemple as principais fileiras económicas – as que têm potencial de crescimento. Todos os Municípios competitivos e inovadores o estão a fazer: definiram um plano em colaboração com entidades externas com recursos especializados e seguiram-no. No entanto, se formos ao website do Município da Figueira da Foz e quisermos perceber os desígnios estruturais de longo prazo, o cidadão pode descarregar uma visão estratégica… feita em 2014. E que não foi atualizada. Façam-se, assim, novos planos e estudos, incluam-se e ouçam-se todas as partes e definam-se metas. Depois, o “segredo”, digamos assim, é metê-las todas a remar para o mesmo lado, em sintonia de princípios e objetivos, pois o desenvolvimento de um território como um todo deve compreender o conjunto das atividades que sejam viáveis no quadro das novas orientações supra-municipais. E, claro, o turismo continua a ser altamente viável no nosso concelho. Embora, seguramente, noutros moldes. Um desígnio bem mais virtuoso do que ser um potentado exportador, quanto a mim, é seguir guiões que até já foram traçados e que devem ser transversais, estratégias como o Pacto Ecológico Europeu, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Milénio da ONU ou mesmo o Portugal 2030 e a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2030. Está lá tudo, basta transpor para a realidade local e definir um rumo que transporte todos os setores para um novo patamar de qualidade. Um bom desígnio táctico, portanto, será por exemplo candidatar a Figueira da Foz a Município ECOXXI 2021, aderindo ao projeto Bandeira Verde para Autarquias XXI e ter nota máxima nos 21 indicadores de sustentabilidade local do galardão.

Quanto a mim, aliás, a dicotomia nem é turismo vs indústria. Mas antes: que turismo e que indústria? E como conciliar, por forma a atingir as metas estratégicas referidas, os objetivos do milénio, ou outros? Da mesma forma que o setor secundário beneficiará com um novo impulso em clusters como o mar ou o agro-alimentar, também o turismo deverá ser alavancado com alternativas ao sazonal e ao cada vez mais instável produto sol e mar, descobrir o interior do concelho, o que a “indústria” do turismo não precisa é propriamente de desinvestimento ou desatenção dos poderes públicos. Desta forma, o turismo de negócios e de congressos, o turismo de natureza, o turismo cultural, o turismo de bem-estar, o turismo residencial, subaquático, sénior, científico (a geologia, a arqueologia, a biologia), de casamentos, etc., são nichos que se podem e devem aprofundar, face à relativa decadência da oferta balnear, mas porque temos de facto um concelho riquíssimo para lá da beira-mar, sobretudo no magnífico corredor do Mondego até Coimbra (criação de escala e rede). O turismo de negócios e de congressos, no entanto, só terá verdadeiramente sucesso se a indústria transformadora, a hotelaria/restauração, as agências e a Câmara estiverem no mesmo barco num esforço concertado (uma estratégia) de promoção e atração, como quatro pilares de uma mesa. E esse esforço concertado só se conseguirá com base numa estratégia, num estudo, num plano que balize políticas públicas e privadas e congregue em vez de dividir ou excluir. Do mesmo modo se deverão impulsionar novas “indústrias”: as indústrias criativas e digitais, a economia social, a regeneração ambiental, etc..
Mal, ou bem comparado, um concelho (ou uma região) é como um ecossistema. Como tal, pergunta-se: Queremos monocultura ou queremos biodiversidade?