Podcast que pretende acolher desassossegadas, ecléticas e curiosas vozes do concelho da Figueira da Foz.

O Palhinhas

José Ferreira Monte

A memória é um campo de onde muitas espécies vão como que se esfumando, e então se procurarmos espécies culturais são quase incontáveis as evaporações, ou recolhimentos. Escritores de que quase não se fala, pintores diria apagados, filósofos guardados em gavetas bem fechadas, políticos soprados para horizontes distantes, toda uma fila de construtores substituídos por um tempo em que a comida, a moda, a facilidade travestida de rentabilidade, facilidade e gosto convivem muito bem com nepotismos, corrupções, e outras variedades, famílias, géneros e espécies à solta na Internet, televisões e coloridos arraiais.

Hoje falarei de José Ferreira Monte, com nome de baptismo José Ferreira da Câmara.

Já, em Abril de 1967, quando entrevistei José Ferreira Monte para o “Suplemento Literário” do Jornal de Notícias, o poeta de Tempo de Silêncio andava “ausente” dos suplementos e páginas culturais, excepção feita a um suplemento de “Artes e Letras”, do Notícias de Guimarães, em Maio de 1965, a ele dedicado.

Hoje, passadas algumas dezenas de anos, Ferreira Monte é, praticamente, desconhecido dos leitores, e este breve texto apenas servirá para recordar quem foi, mais do que uma década, administrador, revisor e redactor da Vértice.

Nascido em Coimbra, em Maio de 1922, viria a falecer na Figueira, na Rua da Lomba, em Março de 1985.

Escritor neo-realista, estreou-se, em 1940, com o livro de poesia Noite Rebelde e, publicou dez livros e opúsculos, o último dos quais Poesia Amordaçada – 1-Cânticos a Pablo Neruda, publicado em 1970, pela “Nova Realidade”, em Tomar. Colaborou na “Gazeta de Coimbra” e n’ “O Figueirense”. O nosso João Gaspar Simões referiu-se ao seu livro de estreia como sendo uma obra de poesia “adulta”.

Companheiro de Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira e Armindo Rodrigues numa colecção, “Sob o Signo do Galo”, por ele coordenada, na qual publica, em 1953, Tempo do Silêncio, com desenho de Lima de Freitas, colaborou nas Marchas, Danças e Canções (1946) de Fernando Lopes Graça, nas Homenagem Poética a Gomes Leal e na Homenagem a Teixeira de Pascoaes.

Tive o prazer de conviver com o José Ferreira Monte. Democrata, militante do PCP, toda a sua vida buscou um ideal, usando um registo poético de intervenção, mesclado com uma saudade dorida de raiz revoltada. Arquimedes da Silva Santos, outro poeta do alfobre de “Vértice”, relembrou, em 1985, que José Ferreira Monte “foi um dos cinco poetas, com Joaquim Namorado, João Cochofel e Carlos de Oliveira (além do próprio autor de textos, que nos tempos heróicos de “Vértice” quiseram dar à revista uma voz digna do movimento neo-realista” (1).

Honório, a Família e os Vizinhos (1949), novela publicada em separado pela revista “Portucale”, e narrativas incluídas em “Escombros” (1957), foram incursões, na prosa, de J. Ferreira Monte. Sempre em posições solidárias e intervenientes, colaborou em Hiroxima, depoimentos de poetas portugueses sobre o flagelo atómico, no 20º aniversário da destruição de Hiroxima e Nagasáqui (“Nova Realidade”, 1967), e em Vietname, depoimentos de poetas portugueses sobre a agressão norte americana ao Vietname (“Nova Realidade”, 1970). Nestas antologias participaram, entre muitos outros, o autor destas linhas, Manuel Alegre (nas duas) e Ilídio Sardoeira (em Vietname) dois autores também ligados à Figueira.

José Ferreira Monte, quando em 1967 lhe perguntei se se considerava exilado em Castelo Branco (onde era responsável pela Biblioteca Itinerante da Gulbenkian) respondeu-me: “Exilado? Na medida em que me ausentei das minhas cidades de berço: Coimbra e Figueira da Foz? Na medida em que perdi o contacto quotidiano dos meus familiares mais queridos e dos meus humaníssimos amigos?” (2)

José Ferreira Monte:

Foi para te dizer que não te esquecemos. Sempre que vou visitar a campa dos meus pais no cemitério da Carneira, paro em frente ao teu talhão; que outros amigos também não te terão esquecido (recordo o Dr. Garrido); que a tua companheira tantas vezes me falou de ti; que a Figueira e Buarcos (sobre a qual escreveste) nunca apagaram quem dizia “parto à desfilada para os meus tempos de criança!” (3) e amava “… a voz do Mar das marés de abraço” (4). A sua obra, e inéditos, encontram-se no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

Em tempo de covid 19, em que quase só falamos recolhidos, em que os nossos contactos se diluíram, paradoxalmente, pelo menos entre os mais velhos, sabe bem recordar as conversas, nomeadamente nocturnas, com o José Ferreira Monte.

Vamos conversar, transformados em fantasmas, noutra dimensão? ESTOU ABERTO A SUGESTÕES.

António Augusto Menano

1- in Vértice, 464/5, pp. 103-132

2- in Jornal de Notícias, 27 de Abril de 1967

3- in Tempo de Silêncio, Coimbra, 1953

4- in Poesia Amordaçada, Tomar, 1970

 

 

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