Subitamente no verão passado foi editada a tradução portuguesa de “Interventions 2020” (na edição local, o “2020” caiu), uma colecção de crónicas, cartas e entrevistas de (e a) Michel Houellebecq (MH).
A figura já é familiar ao público português e é, porventura, o mais conhecido dos escritores franceses vivos. Um facto estranho para um país que tem dois Nobel naquela lista (Patrick Modiano, premiado em 2014 e Jean-Marie Le Clézio, em 2008), mas que diz muito sobre o impacto do conjunto da obra. Esse impacto cresceu brutalmente no momento dos atentados do “Charlie Hebdo” (2015) que, na edição anterior, trazia na capa uma caricatura do escritor. Acresce que, por essa altura, MH tinha acabado de editar “Submissão”, cujo temática central é a “islamização” da sociedade francesa.
O livro cobre um período temporal que vai desde 1993 até 2020. O momento inicial é, portanto, anterior ao primeiro romance do autor: “A extensão do domínio da luta” (de 1994). Antes disso, havia já, todavia, produção poética e ensaística.
As “intervenções” são muito diversificadas (até um texto sobre Neil Young) mas incluem, evidentemente, apontamentos vários sobre os temas centrais da obra do escritor (ia escrever “as suas obsessões”, mas pode ser excessivo): a “descaracterização” da França e, em geral, o declínio da civilização ocidental, o vazio espiritual do homem contemporâneo, a busca desesperada de sentido e, em resultado destas preocupações, o olhar áspero sobre o conforto (chamemos-lhe assim) burguês, cosmopolita e liberal.
MH é dos casos em que o fascínio da obra levou a um certo culto do homem. E é isso, julgo eu, que justifica esta edição. Pessoalmente, prefiro, de longe, o romancista ao analista social, ao filósofo, o que seja. A leitura de “Serotonina”, “A possibilidade de uma ilha” ou “Plataforma” é bem mais estimulante do que estas “intervenções”. Aliás, em linha com o que o próprio diz. Veja-se:
https://www.fronteiras.com/videos/troque-seu-filosofo-por-um-bom-romancista
De todo o modo, vale a pena dizer que o livro cresce de interesse com o aproximar do seu final e, na minha visão, há dois textos que merecem uma leitura especialmente atenta: um, é uma troca de argumentos entre MH e Geoffrey Lejeune, um jornalista dos meios católicos mais conservadores, (onde emerge, a meio da conversa, a figura de Éric Zemmour, a “rising star” da direita identitária francesa) sobre o papel da Igreja Católica Romana e o último dos textos, “O caso Vincent Lambert nunca devia ter acontecido”, uma reflexão de MH sobre um dilacerante caso de vida vegetativa e de eutanásia (ver aqui: https://www.publico.pt/2019/07/11/mundo/noticia/vincent-lambert-morreu-1879531).
Em síntese, não se está perante algo que possa substituir a leitura das mais importantes ficções de MH mas que pode dar ainda mais contexto a esses romances, ajudando a compreender melhor o “ideário” de MH. E isso é tanto mais importante, quanto a ficção do nosso autor tem importantes, e evidentes, elementos autobiográficos. A título de exemplo, o protagonista de “Serotonina” estudou agronomia como MH, a figura central de “O mapa e o território” refugiou-se, como MH, na Irlanda por razões fiscais. Boas leituras!