Podcast que pretende acolher desassossegadas, ecléticas e curiosas vozes do concelho da Figueira da Foz.

Maria L. Duarte

Na floresta gelada à porta da Europa

A Europa louva-se da sua carta dos direitos do homem e do cidadão, da criança, louva-se dos seus valores, princípios, e cada vez que há um ataque terrorista são o nosso modo de vida, os princípios e valores humanistas europeus que aparecem nas bandeiras discursivas a afirmar que não nos vergaremos, não nos demoverão de continuarmos a ser os moralistas do mundo.

Alexander Lukashenko, o usurpador de poder e ditador bielorrusso empurrou migrantes para a fronteira com a Polónia, para a fronteira com a Europa.

Mateusz Morawiecki, PM da Polónia, não se coíbe de entrar na guerra dos posts e likes, na tentativa propagandista de esconder a sua responsabilidade.

A Lituânia apressa-se a reforçar fisicamente a delimitação da sua fronteira.

E nem sequer se coloca a questão sobre «quem pagaria o acolhimento?», a UE pagaria.

Neste frenesim propagandista, de força, de xadrez, de coacção para cedência e de geopolítica, Lukashenko mobiliza força bélica para a fronteira, Putin ajuda o amigo ditador com poder nuclear de guerra, a Polónia exibe o canalizar do orçamento para as tropas e polícias que estaciona igualmente na fronteira e a Lituânia não tinha nada mais onde gastar o dinheiro senão no reforçar das fronteiras.

Lukashenko, depois da afronta de desviar um avião dos céus europeus para prender vozes opositoras (e se rir da nossa cara), acrescentou só mais um horror à sua história de forjar resultados eleitorais e de espalhar o terror, a prisão, a tortura e a morte entre os que o afrontam; resolveu, agora, empurrar (ou transportar) seres humanos para uma armadilha mortal. É um ditador acabado, mas a dar crédito à desumanidade até ao dia final, um ditador que se aguenta pela inércia de uns e pelo apoio interessado de Putin (que, entretanto, exibe o seu poder imperial na fronteira com a Ucrânia).

Não é Lukashenko que me interessa nestes longos dias na floresta gelada que matam de frio, fome e doença seres humanos abandonados.

A Polónia, Estado Membro da União Europeia, joga o mesmo jogo de terror, assiste à morte e à desumanidade entre o desafio de popularidade de redes sociais, a afronta à UE e a prova conseguida de que a UE se verga à sua desumanidade e desafio quando chamada a ter um papel activo humanista.

É da União Europeia o país que, depois de há pouco fazer afirmar o primado da lei nacional sobre as normas europeias, de dificultar todo o tipo de votações sem abdicar de fundos, de envergonhar a democracia europeia, agora nega a entrada de jornalistas no local, nega a entrada de organizações de ajuda humanitária, viola gritantemente a Convenção de Genebra e os princípios europeus, e condena à morte gelada e esformeada crianças, mulheres e homens que só buscam uma oportunidade, apenas procuram esperança.

A Polónia não tem dinheiro para prestar ajuda humanitária às pessoas em trânsito, não tem dinheiro mesmo com os fundos que recebe, mas tem o desplante de colocar à frente de uma fronteira de arame farpado uma parede verde de soldados, polícias e armamento, sob a desculpa espúria do estado de emergência.

Não espero nada de Lukashenko, não espero nada da Polónia cujos ultrajes não podemos continuar a calar, nada espero da Lituânia que se fecha, só lamento que Polónia e Lituânia se fechem do lado de cá.

Mas cada estado membro da União Europeia que não força o acolhimento, que não se disponibiliza para acolher transitória ou definitivamente aquelas pessoas, que não força a ajuda humanitária numa fronteira europeia, que não exige já a abertura à imprensa livre que nos relate a todos a tragédia que ali se desenrola em morte, é cúmplice em cada morte. E estas mortes que nos mancham a consciência eu não perdoarei à liderança da União Europeia e à liderança de cada Estado Membro. Não perdoarei ao nosso Primeiro Ministro, aos nossos deputados, ao nosso Presidente da República, aos líderes e proto lideres partidários, que são cada vez mais reféns de partidos e movimentos populistas pseudo nacionalistas.  O Brexit, Lesbos, Lampedusa, Calais, o enorme sarcófago chamado Mediterrâneo, não nos ensinaram nada, porque fazemos discursos inflamados mas ainda deportávamos afegão e líbios (deportamos) quando nada mais há à sua espera do que o horror da morte.

Durante a nossa noite de sono, mais crianças, jovens e idosos morrerão gelados e com fome naquela floresta escura e gelada, para onde se enviam cães e força para aterrorizar até ao último suspiro. Mas por cá brincamos às lideranças internas, idas a multibanco de alguém que muito quer orquestrar tudo, brincamos à protecção do nosso quintal. Mas também não se pode esperar muito de lideranças que se conformam com uma população sem abrigo de poucos dígitos e ainda assim eternizada.

Sozinhos nada podemos, se todos unirmos a nossa voz, em posts que são ridicularizados, artigos que todos dirão que não fazem a diferença, vozes que não são conhecidas e por isso pouco barulho acrescentam, talvez consigamos mostrar que a sociedade civil não é contida em gabinetes. Talvez um dia possamos mostrar quais são os princípios e a justiça que queremos que se faça em nome do povo, com o poder que lhes emprestamos. Talvez possamos, se algo dissermos, mostrar que não nos calam, que não nos silenciamos, que em nosso nome não morrem cidadãos gelados e com fome, sem ajuda, porque onde há espaço para o princípio humanista, há espaço para a humanidade.

da mesma voz