Instruções de utilização:
1. “Ouvi e ler” o vídeo.
2. Ler o texto que se lhe segue.
Três dias antes o Zepelim havia acostado ao céu da cidade. Era a segunda vaga. A primeira tinha acelerado o fim da pobre Geni. A sua irmã ainda não tinha perdoado a cidade, jamais perdoaria. Dora era professora primária, mulher de luta. Vinha do mesmo passado muito pobre da irmã, mas vivia de maneira digna e com sacrifícios, sempre a fugir da miséria. Não era de ninguém, nem do seu marido. Não podia ser um poço de bondade, pois que o mundo e a vida não deixaram.
A cidade jamais lhe disse algo, muito menos repetiu. Dora era muito discreta e tinha poucos telhados de vidro. Poucos e fortes. O comandante do Zepelim, no dia anterior, tinha-se dirigido a toda a cidade nestes termos: – “Mesmo que aumentemos o tradutor de inteligência, nem toda a gente entenderá esta mensagem. Notamos, pois, que vós, humanos, só entendeis o que quereis e nada entendeis se vos pagarem para tal. Sendo difícil dirigir-me a cada um de vós, individualmente, ordenei que o referido tradutor se ligasse no máximo e que a difusão desta mensagem fosse total: – Explodirei a cidade. A iniquidade mantém-se e o horror não se esbateu!”
Todavia, o comandante não era o mesmo. Não era o mesmo alienígena, sublinhe-se. Pessoa não podia. Os prazeres seriam outros, cósmicos porventura. Apresentava traços semelhantes aos de dois poetas, pelo menos. Parecia até espiritual. A cidade estava apavorada e confusa. Até que ele proferiu: -“Posso mudar de ideia, caso uma dama abdique do que mais acredita e que, nesse desenrolar, ao mesmo tempo, fique meio louca”. Pois, essa dama era Dora. A sua mais forte convicção era esta: Os gatos são mais bondosos que os humanos. E meia louca, embora ninguém soubesse, como acontece com quase todos nós, ela já era. A tarefa parecia, pois, impossível. O prefeito, a preceito, tentou seduzir-lhe o peito, o bispo de olhos inchados, que não teria mais namorados e o banqueiro comilão, nem mais um tostão, antes distribuição. Afinal, quem dá alguma coisa hoje em dia? O resto da cidade pedia-lhe: -“Salve-nos!” Nos dias que se seguiram, quanto à questão dos gatos, Dora fez o que lhe parecia estar ao alcance: – Passou a cumprimentar toda a gente que encontrava, não discriminou, subscreveu muitos créditos, foi à missa, confessou-se, acreditou em vinte encontros com amigos – que não se deram, nomeou melhores amigos para a vida – que não se deram, confiou na palavra de cinquenta e sete pessoas, distribuiu comida, acolheu cães em casa, ganhou dinheiro com o seu trabalho, pagou as suas contas, ajudou o bairro inteiro e confiou muito que, um dia, precisando, a ajudariam também. Prometeu a si própria e aos Deuses que não viraria as costas à família. Que nunca, mas nunca, baixaria a cara a um amigo; acreditaria na palavra de quase todos e não se meteria na vida de ninguém. Passaria a crer que os telhados de vidro são isso mesmo, telhados de todos. Faria fé na fé humana, na sua moral e no céu estrelado acima dela. Jurou, a não ser por involuntárias e aparatosas quedas de terceiros no chão, que não riria do mal. Mas isso já ela fazia, só que ninguém sabia. As pessoas riem do quê mesmo? Do vazio das suas vidas? De não saber para que vivem? De nada saberem de si e do mundo? E muitas, sabendo que não é como o vêem –quem sabe como é o mundo… por que teimam?
Por fim, prometeu, mais que tudo, que a sua vida só seria infeliz para os outros. E assim era. Faltava agora a parte do meia louca. Ora, ela já era meio louca. Assim sendo, apostou neste plano: – ser igual a si própria- sem se exalçar, nem em loucura total, viveria cada dia como se pudesse ser o último. Mas, ao invés de fazer dieta, ver televisão ou andar em contramão de carro, antes diria aos seus que os amava em cada um dos dias. E em cada um dos dias, tentaria vê-los e fazê-los rir. Tentaria agir em conformidade. Ser Coerente. Igualmente, não pediria dinheiro a ninguém, leria livros de papel, comeria pudim, e, duas vezes por semana, de preferência na lua cheia, à meia-noite em ponto, saltaria do alto da Cascata do Barbosa até à água azul límpida (Saltos que ela já fazia antes de aparecer o Zepelim, mas que também ninguém sabia). Ao fim de duas semanas, o comandante, num assombro da dita espiritualidade, partiu com o seu zepelim. A cidade aliviou. O silêncio foi grande. E como um poema pode quase sempre conter todo um conto, mas um conto quase nunca contém todo um poema, um mês depois, quando Dora subia ao morro para distribuir água, um gandulo, sem carta e em altas velocidades, sem conseguir dar uma curva mais apertada, enfiou-lhe um veículo em cima, matando-a. A cidade, por fim, aliviou ainda mais.